Dizer algo com explicações que despertem a curiosidade do leitor sobre capitalismo, trabalho, educação, livre pensar e sobrevivência (presentes no conteúdo de um livro escrito por vários pesquisadores) é um processo de mediação que remete à vida humana. É um enlace em torno de pensamentos unidos que se espraiam “[...] como o modelo das ondas,” do senhor Palomar, de Ítalo Calvino, um escritor que me ajuda a pensar, rememorando a epígrafe desse prefácio, sobre a procrastinação dos problemas do sistema capitalista e seus resultados nefastos em grande medida registrados nos trabalhos da coletânea de textos que compõem este e-book, intitulado EduSobrevivência.
Essa é a proposição a que me faço, preliminarmente, me questionando: que mundo é esse retratado pelos autores dos capítulos que compõem essa coletânea? Trata-se de um mundo no qual predomina uma organização estatal que consolida a necropolítica e remete o homem ao desvalio; um mundo perene de direitos negados à palavra livre, ao trabalho e à educação, onde o que é vivo se torna apenas parte de si; lugar onde o humano é fragmentado, tornado um ser sem direito à vida. A “vida” a que me refiro são no sentido e significado dados por Enrique Dussel e pelo Papa Francisco, os quais apreendo que pensam a vida de forma condizente à dignidade humana.
Então, dizer algo sobre o contexto expresso, refletido e implicado no conteúdo desse e-book ora prefaciado é desvelar conflitos materializados no mundo (contexto local e global, e virtual) apresentado pelos autores como gerido pelo sistema capitalista de produção, o qual renova, a cada crise, suas fases perversas. Ele é um sistema que se reinventa de formas cada vez mais restritivas e menos redistributivas, quando se trata de dispor para todos, em favor da vida sobre a terra, dos bens e das riquezas acumulados ao longo da história. Esse sistema que, mesmo em seus modelos manifestos em Estados de bem-estar social, traz latente a essência de si, qual seja: a lógica excludente racionalmente disseminada que corrobora à negação da vida humana de forma alienada e alienante; vida como mercadoria concebida como tal pelo capitalismo ao longo de sua história - como modo de produção predominante.
Todavia, é necessário considerar que a vida carrega em sua concretude um valor sobre o qual plasmam o trabalho e a educação de forma imanente e, para compreendê-lo, a ciência pode se utilizar de “dispositivos biológicos e históricos,” portanto, a negação desses incide sobre a negação daquela. Daí advém a necessidade de uma nova economia menos devastadora e mais humanizada. Assim, nessa luta constante, vida, trabalho, educação e livre pensamento são considerados pela ciência da história (leia-se pela visão marxista) como direitos inalienáveis em torno dos quais a realidade é situada como objeto concreto materializado nas ações humanas.
Retomo, com base nas interpelações suscitadas pelo conteúdo expresso no e-book, por sua qualidade e propósito de resguardar escritos que em comum têm relevância pública, reflexões de Leandro Konder para quem as sociedades não vivem sem trabalho, e de Boaventura Santos, que ensina que as sociedades modernas não podem prescindir da ciência como construto humano, como um “conhecimento prudente para uma vida decente”, e que nessa a educação para emancipação tem um lugar na cartografia do mundo.
Para coadunar com esse pensamento, ressalto que o e-book se estrutura em três partes em torno de uma temática ampla, que comporta a reunião de 15 capítulos os quais se articulam em torno da tríade Estado, trabalho e educação no mundo capitalista, tentando tornar a vida possível com dignidade, posto que analisam e repensam um novo modo ou modelo de produção como alternativa para garantir a sobrevivência, além de denotarem explicações acerca de novas formas de relações laborais e de formação por meio da distribuição dos bens produzidos de modo equânime, de relações mediadas socialmente dos trabalhadores com o Estado que os regula, bem como do homem com a máquina e a formação desse para um mercado cuja face se desconhece, pois está imersa na fluidez e virtualidade da economia 4.0. Tudo isso vinculado às políticas econômicas e educacionais regulamentadas pelo Estado que as formula, implanta e avalia.
Apontarei de forma breve e descritiva as três partes e os capítulos que compõem a coletânea, apenas sumariando os pontos-chaves de cada um. Para isso, me utilizo, inclusive, dos títulos, dos resumos e da terminologia empregada pelos autores sem com esses dialogar, dada a extensão dos textos, e por considerar que o já exposto é fruto da inspiração e interpretação demandada pela leitura desses.
A Parte I é intitulada Reflexões sobre trabalho, capital e o estado e suas manifestações na luta de classes e por empregabilidade e é composta por seis capítulos, conforme os apresentamos a seguir.
Em Capitalismo e suas formas de Estado, primeiro capítulo dessa coletânea, Emanoel Rodrigues Almeida e Cezar Amaro Honorato de Souza apresentam um texto que demonstra a correspondência entre trabalho e Estado como regulador das diferentes formas de produção capitalista. Eles trazem o trabalho como complexo fundante do ser social e suas implicações nas diferentes formas de Estado no decorrer da história do capitalismo. Para os autores, as formas de Estado são manifestações das forças produtivas, e é o trabalho que o determina materialmente. Por isso, apresentam o Estado neoliberal como a última forma histórica de Estado capitalista.
O capítulo A concepção Marxiana /Marxista do Trabalho e os desafios das “novas” relações de Trabalho na ordem regressa destrutiva do capital, de Gilson de Sousa Oliveira, Tânia Machado Serra Azul e Catarina Angélica Antunes da Silva, é o segundo da primeira parte. Trata-se de um ensaio teórico que traz à discussão a categoria trabalho. As autoras defendem o caráter ontológico e histórico do trabalho em uma concepção pautada na visão marxista/marxiana para a compreensão do desenvolvimento da humanidade e suas formas de relações, pois esse tem relevância para que o homem se desenvolva como humano/social. Concluem que, no atual estágio do capitalismo, o trabalho tem se tornado desumanizador, e propõem que o trabalho seja libertado dessa dimensão alienante para que o capital perca seu domínio sobre as classes trabalhadoras.
Análise da crise dos Subprimes de 2008 numa análise marxista a partir de publicações da esquerda brasileira, é de autoria de Thiago Vasconcellos Mondenesi, é o terceiro capítulo da primeira parte. Nele, o autor analisa o que considera uma crise cíclica do capitalismo em 2008, ou crise financeira dos subprimes, que trouxe ao mundo capitalista uma amostra da agudização do capital e do desmonte dos Estados nacionais, forçando o capital a impor maiores sacrifícios à classe trabalhadora, retirando dessa direitos e garantias para tentar superar esse momento. Na discussão, o autor salienta que as publicações encontradas sobre a crise em análise não dão conta de forma clara do fenômeno em si, qual seja, a crise dos subprimes e suas implicações sobre as relações com as políticas públicas de trabalho no Brasil e no mundo, mas pôde, no âmago dessa produção, visualizar que o fenômeno não foi discutido de forma decisiva para a compreensão do impeachment da presidente Dilma Rouseff, em 2016, na revista do Partido dos Trabalhadores.
Emprego e juventude: a inserção do segmento juvenil no mercado de trabalho do Rio Grande do Norte, de autoria de Ana Patrícia Dias Sales e Francisco José Lima Sales, traz os resultados de uma pesquisa desenvolvida em 2018 acerca da força de trabalho dos jovens de 25 a 29 anos, bem como da situação ocupacional desses na capital do Rio Grande do Norte de 2009 a 2017. Esse estudo apresenta uma contextualização histórica da reestruturação do capital em suas relações com o trabalho amparada na legislação que acomoda os interesses do mercado, tornando-o cada vez mais flexível. Assim, para os autores as garantias do trabalhador vão se tornando escassas e produzindo uma atipia que confabula com a terceirização e a precarização, ampliando o leque de subempregos para mascarar o desemprego em larga escala no país. Na capital potiguar, para os autores, não é diferente, os jovens empregados estão em sua maioria no setor de serviços e ocupam subempregos em situações consideradas “atípicas” delineadas por contratos flexíveis e sem garantia de vínculos, o que impulsiona a desigualdade social.
Camponeses Feirantes: uma forma de luta pela continuidade de sua existência na sociedade, o quinto capítulo da primeira parte, de autoria de Cristiany Barbosa Ferreira Resende e Daiane Dizielle Meireles Soares, mostra uma das formas de preservação da existência na sociedade capitalista. Consideram que as feiras livres significam resistência do uso social nos espaços públicos, pois essas se apresentam como uma forma de comércio resistente ao tempo por permitir ao camponês escoar a produção de seu trabalho em espaços urbanos, criando para si meios de sobrevivência.
O capítulo Trabalho Social no CRAS Genibaú: a Visão de Profissionais e Usuários é o sexto e último capítulo da primeira parte. É de autoria Ticiane Gomes de Siqueira e Maria Erica Ribeiro Pereira, que analisam a Proteção Social Básica um dos níveis da Política de Assistência Social do Brasil. O estudo sinaliza para a fragilidade de entendimento dos usuários sobre a política de assistência social, o que impede reivindicações por direitos que são assegurados por lei. As autoras consideram que é necessário lutar por uma sociedade mais justa e que tenha o Estado como garantidor dos direitos constitucionais.
A Parte II é intitulada Educação, o mundo do trabalho e a influência do capital nas políticas educacionais e é comporta por cinco capítulos.
O primeiro capítulo, Educação Superior e Trabalho Docente na Lógica Capitalista Contemporânea, é de autoria de Francisca Rejane Bezerra Andrade e Mônica Duarte Cavaignac. Elas discutem, inicialmente, o momento do golpe de 2016, que retirou da presidência do Brasil, Dilma Rousseff, e deu início ao desmonte das políticas sociais para a área da educação. Prosseguem demonstrando que a lógica capitalista contemporânea permitiu a expansão da educação superior como mercado educacional, não como forma de diminuir as desigualdades educacionais, mas como meio de garantir financiamento público para a educação privada. Concluem sinalizando que tais políticas sob a regência capitalista têm gerado condições de trabalho docente desiguais, desvalorizando a profissão e fragilizando a ciência e a tecnologia aqui produzidas.
A educação brasileira no contexto da crise do capital: da fetichização da mercadoria à mercantilização do ensino é o segundo capítulo da Parte II, de autoria de Maicon Donizete Andrade Silva e Enéas Arrais Neto. Nesse capítulo, analisam, em meio à nova crise capitalista, as forças produtivas do sistema, que tendem a transformar tudo que está ao seu alcance em mercadoria em suas fases de agudização, incluindo-se nessa os bens construídos social e historicamente pela humanidade. Os autores abordam, a título de esclarecimento, que para se estabelecer uma análise melhor situada acerca da questão, é necessário compreender o fetichismo da mercadoria como categoria de análise para que se possa demonstrar as variadas nuanças da mercantilização do ensino, objeto que eles selecionaram para analisar, considerando que o capital, em suas crises, imprime em suas formas de coisificação do trabalho humano, novos objetos para a compra e venda e daí surge a supervalorização da mercadoria – educação - como suporte para se ter trabalho no mercado, pela mercadorização do ensino.
O terceiro capítulo da Parte II é Educação em Mordaça: o Projeto Escola Sem Partido e o Silenciamento do Pensamento Crítico Educacional Brasileiro. Seus autores são Demetrio Alves Melo, Erika Martins Araújo, Océlio Jackson Braga e Enéas Arrais de Araújo Neto, que se dedicaram a analisar as disputas societárias e político-ideológicas que têm tipo ampla divulgação no Brasil e, de certo modo, têm incidido sobre a educação e suas ações no espaço escolar. Os autores consideram que essas disputas foram formalizadas no denominado “Escola sem Partido”, que é objeto de análise do capítulo, e considerado por eles como um mecanismo utilizado por seus idealizadores para tentar manter o controle governamental sobre os processos educativos. Os autores observam que tal projeto se fundamenta no autoritarismo conservador brasileiro plasmado sobre ações que desconsideram os direitos constitucionais do país que garantem liberdade de docência e educação crítica e emancipadora para os cidadãos
Trabalho e Educação: uma intervenção crítica no campo da formação docente, é o quarto capítulo da Parte II, de autoria de Gilson de Sousa Oliveira, Tânia Machado Serra Azul e Catarina Angélica Antunes da Silva. Os autores discutem trabalho, educação e formação docente tendo a categoria trabalho como suporte discursivo para o entendimento da relação entre esses no contexto capitalista atual. Também apresentam as condições objetivas do trabalho docente e debatem sobre a forma hegemônica como a educação é conduzida pelo Estado. À luz de uma concepção materialista histórico-dialética, os autores sugerem algumas proposições que apontam caminhos para a formação de professores, que vão do reconhecimento da necessidade de transformação às lutas por dignidade.
Em Gestão democrática versus Gestão por resultado no contexto das reformas educacionais, quinto e último capítulo da Parte II, os autores de Cezar Amario Honorato de Souza e Emanoel Rodrigues Almeida analisam os impactos das políticas educacionais observando os resultados dessas sobre as gestões dos sistemas de ensino, as reformas educacionais e a crise instaurada nas políticas da educação brasileira. Tratam o tema em uma perspectiva crítica que denominam de onto-marxiana para apontar em suas considerações que, por dependerem de recursos financeiros demandados da implantação de políticas advindas de fora, as gestões tendem a seguir o modelo de gestão por resultados apoiados em índices educacionais, descaracterizando, dessa forma, a gestão democrática.
A Parte III, Ensino e aprendizagem e as políticas públicas no contexto da educação profissional, é composta por quatro capítulos.
O lugar da Educação Profissional nos Institutos Federais de Educação, de Erika Martins Araújo, Jerciano Pinheiro Feijo e Demetrio Alves Melo, é o primeiro capítulo da Parte III. Nele, os autores tratam da meritocracia como um instrumento ideológico norteador da formação dos trabalhadores. Para isso, analisam a educação e suas relações com o mundo do trabalho tendo como fundamento uma abordagem alicerçada na teoria crítica. Assim, eles desvelam as armadilhas da formação meritocrática apoiada na teoria do capital humano como vertente de aprimoramento para a qualificação do trabalhador. Ao final, concluem que as políticas educacionais têm sido formuladas com base na ideologia da meritocracia, até mesmo aquelas que aparentemente apregoam oportunidades e direitos iguais para todos.
O capítulo, Teoria VS. Prática da aplicação de Programas Governamentais: uma análise da realidade de programas no interior do Ceará, de Michael Marques Vianna, Gilson de Oliveira Sousa e Catarina Angélica Antunes da Silva, é o segundo da Parte III, e traz uma análise sobre três programas de assistência estudantil implementados em escolas públicas no interior do Ceará/Brasil. Os autores observam que há contradições nas respostas dos participantes da pesquisa e que ininteligibilidade na comunicação pode resultar em problemas relacionados à aplicação dos recursos dos programas por parte das prefeituras.
A importância do Programa Nacional do Transporte Escolar no desenvolvimento dos alunos como futuros profissionais e cidadãos, de autoria de Ana Clara Souza Araújo, Gilson Oliveira de Sousa e Catarina Angélica Antunes da Silva, é o terceiro capítulo da Parte III. Nele, são analisadas políticas educacionais com ênfase no Programa Nacional de Apoio ao Transporte Escolar (PNATE), observando as relações desse com o Programa Nacional de Alimentação Escolar e o Programa Nacional do Livro Didático. As autoras concluem que o PNATE é relevante, pois contribui para diminuir a evasão escolar, garantido o acesso à educação de estudantes de baixa renda.
O quarto e último capítulo da Parte III é também o último da coletânea, e tem como título Dificuldades de aprendizagem: o acompanhamento pedagógico como um caminho possível na educação profissional. Os autores são Antonio Alan Vieira Cardoso, Carmem Laênia Almeida Maia de Freitas, Fátima Elisdeyne de Araújo Lima, Germana de Sousa Vieira e Maria Beatriz Claudino Brandão. Durante o texto, os autores apresentam uma proposta de acompanhamento pedagógico para a educação profissional. Como eixo estruturante da proposta, fazem referência aos instrumentos legais que dão sustentação a tal prática com apoio em uma revisão de literatura a qual discute as concepções de dificuldades de aprendizagem em uma perspectiva crítica, que resultará na implantação de um plano de atuação para o acompanhamento de estudantes com dificuldades de aprendizagem.
Por fim, as reflexões que perpassam o conteúdo desse e-book questionam a realidade exposta em um contexto no qual o domínio do capital vem desafiando a vida e as relações humanas e sociais que perpassam pelo trabalho e a educação. A obra procura, deste modo, contribuir para a desalienação da formação dos trabalhadores, trazendo informações para o entendimento histórico-crítico fundamentado sobre a sociedade, o Estado e a atuação docente, entre outros fenômenos e ações que tem afetado todos os cidadãos de forma consistente. Os textos abrem-se para outras interpretações além das que aqui foram expostas, pois no plano epistemológico em uma perspectiva materialista, histórico e dialética, cada leitura provoca um novo diálogo que se move como uma onda que se renova em práticas dialéticas (para movimentar o pensamento e as ações em busca de uma consciência planetária que outorgue ao ser humano o direito a ter direitos e a usufruir dos bens sociais fruto do trabalho).
Profa. Dra. Lenina Lopes Soares Silva
Natal/RN, primeira de 2020 em meio a pandemia de Covid-19