Em todas as sociedades, as diferenças entre os indivíduos têm sido utilizadas como justificativa para legitimação de interesses políticos, econômicos, religiosos, apoiando a construção de segregações a partir de noções de superioridade e inferioridade, normalidade e anomalia, doença e sanidade. Em regra, as diferenças são produzidas a partir do estabelecimento de uma identidade apresentada positivamente em contraposição à outra apresentada negativamente como diferente. Tais diferenças impõem um status de superioridade de um grupo em relação ao outro. Essas identidades são erigidas a partir de dispositivos concernentes a articulação de instituições, organizações sociais, saberes produzidos em vários campos da vida social, que acabam por interferir na forma como se organizam as relações sociais. Neste artigo, propomo-nos a realizar, à luz da Análise do Discurso de Linha Francesa, da Crítica Feminista e dos Estudos Culturais, uma leitura discursiva da cantiga popular nordestina “A mulher infiel”. Para tanto, identificaremos qual(is) a(s) “vontades de verdade” relacionadas ao feminicídio presente(s) na cantiga, bem como qual(is) a(s) identidade(s) de gênero(s) apresentada(s). Partindo-se dos conceitos de identidade e de “vontades de verdade”, podemos afirmar que na cantiga, o sujeito-mulher é identificado como culpada pelo seu trágico destino. Por sua vez, o sujeito-homem-assassino é representado como aquele que agiu dentro dos limites aceitos pela sociedade e pelo Estado nos casos de traição feminina. A cantiga apresenta, a partir de uma formação discursiva machista e patriarcal, “vontades de verdade” que legitimam o homicídio de mulheres em caso de traição, sob o argumento falacioso da legítima defesa da honra.