MARKENDORF, Marcio. O clone e a teoria da monstruosidade. Anais ABRALIC Internacional... Campina Grande: Realize Editora, 2013. Disponível em: <https://mail.editorarealize.com.br/artigo/visualizar/4431>. Acesso em: 24/11/2024 21:47
O imaginário da monstruosidade encontrou na literatura um campo privilegiado de elaboração, contudo, foi com as possibilidades técnicas oferecidas pelo cinema, a partir do século XX, que expressão do grotesco encontrou maior fecundidade artística. Nos filmes, as mais diversas deformidades são oferecidas aos olhos do espectador com o intuito imediato de fazê-lo tomar a poltrona da frente como barricada. O gênero de horror está assentado em figuras persecutórias feitas de excesso e de exceção. Na linguagem audiovisual, o monstro precisa ser uma imagem desmedida, muitas vezes concebida com base na imediata oposição àquilo que conhecemos por humano ou natural. Então, como pensar a monstruosidade do clone se este é idêntico ao do homem? A engenharia genética, ao menos no campo ficcional, permitiu que a clonagem humana deixasse de ser apenas uma hipótese e tornar-se um feito científico realizado. O cinema, ao estreitar o laço entre ficção científica e terror, elaborou, sob a potência da fantasia doppelgänger, uma narrativa transgressora de inúmeras ordens sociais (ética, moral, religiosa, biológica, política). A fábula nascida dessa fricção de gêneros mantém fraternidade com a expressão monstruosa porque considera seu objeto algo que ultrapassa o humano e desestabiliza a noção de originalidade essencial. Ademais, em termos simbólicos, a duplicação de um corpo não parece implicar a repetição da alma, o que significaria que o clone é habitado pelo Vazio ou pelo Mal. Constitui, então, um corpo de exceção frente à ordem humana estabelecida e passa a ser percebido ao modo de uma aberração monstruosa, pois em tal lógica o negativo – a ausência – seria fonte do que é inumano. No filme "O clone" (A ton image, de Aruna Villiers, 2004), uma mulher dá a luz ao próprio clone e compete amorosamente com a “reprodução de si mesma” pelo amor do marido, narrativa que mexe, sobretudo, com tabus sexuais e a noção de pecado. Afinal, o que habita aquele corpo senão uma espécie de cópia em negativo (e negativa)? Já na película "A ilha" (The Island, de Michael Bay, 2005) a venda de clones por uma grande corporação – comercializados como um tipo especial de seguro de vida – constitui crime contra as leis de eugenia do futuro e levanta perguntas sobre o relativismo moral que o humano pode assumir para viver/sobreviver. No futuro sombrio do romance de Kazuo Ishiguro, "Não me abandone jamais", publicado em 2005, clones são considerados corpos vazios, destituídos de subjetividade – criados e mantidos por um programa estatal, de amparo legal, servem somente à reposição de órgãos, medida que revela a naturalização de uma ordem bárbara pela própria força civilizatória. Nesses três casos está presente o mesmo esvaziamento da humanidade, a mesma coisificação dos seres, o que implica uma acepção do clone de forma dupla: adjetiva (monstruoso) e substantiva (monstro). Este trabalho pretende, portanto, problematizar o clone à luz da teoria da monstruosidade, percebendo-o como produto de um relativismo moral e filosófico permitida pela potencialização ficcional dos avanços da ciência.